Aquele verão foi glorioso. Foi um
daqueles verões que cheiram a sal e sabem a limonada. Um daqueles verões que
parecem infinitos e em que se consegue ouvir os Beatles no ar. Naquele dia,
tinha ido de bicicleta à livraria, como fui todas as sextas-feiras daquele
verão. Mais uma sexta-feira à tarde. Pensava eu.
Vi-a assim que entrei na loja. Lá
dentro estava fresco e escuro, tudo o que se quer num sítio, para além de
livros e café, claro. Ela estava de costas para mim com um livro de Shakespeare
na mão. Gostei dela desde esse momento. Ela virou-se e sorriu-me, apanhando-me
a olhá-la. E ali eu soube. Eu soube que seria ela. Eu soube que seria ela a
mudar a rotação da terra só com esse sorriso. Esse sorriso que não se deixa
domar. Esse sorriso que não nos deixa recusar nada. Esse sorriso capaz de curar
doenças e de fazer parar guerras. Esse sorriso tóxico que nos faz viciar. Esse
sorriso que me deixou preso.
Decidi passar lá a tarde. Pedi um
café e abri o livro que acabara de comprar por impulso, só para a poder ver
mais um pouco. Mas o livro ficou por ler e o café por beber. Passei a tarde a
observá-la em paranoia, a vê-la desenhar numa outra mesa que não era perto o
suficiente. E apaixonada e distraída ela desenhava. Desenhava um nada a pensar
num tudo. Sorria apaixonada e distraída. Ainda nem sabia o seu nome mas cada
sorriso era como uma lâmina que me sufocava pois em cada sorriso cada vez mais
me apaixonava. Apaixonava-me por ela mais e mais até esse amor se infiltrar em
mim. Essa apaixonada e distraída por quem me apaixonei sem o querer.
Quando a livraria fechou fomos
ambos expulsos sob a luz do pôr-do-sol mais espetacular que já vi na vida. Mas
o seu cabelo longo e os seus olhos verdes faziam-me sentir embriagado duma
maneira que nenhum licor poderia, talvez não fosse assim tão espetacular como
me lembro. Uma vez na rua, preparei-me para pegar na bicicleta e me despedir daquele
sonho. Mas um sentimento estranho invadiu o meu ser ao ver um cigarro passar os
seus lábios de anjo enão pude evitar uma risada. Talvez seja pelo paradoxo que
presenciava. Talvez seja pela sua beleza não merecer o tabaco nojento. Talvez
seja pelo desgosto de ser o cigarro a tocar os seus lábios, e não os meus
lábios a tocarem os seus. Algo me fez achar o ato terrivelmente inadequado.
Talvez a sua expressão inocente enquanto o fazia. Mas algo me diz que faz
sentido. Agora faz sentido. E talvez as estrelas cadentes sejam os anjos no céu
a atirar as beatas fora antes que Deus os possa apanhar.
Pediu-me lume e acho que nunca
agradeci tanto aos céus por não ter sido ainda naquela semana que tinha
decidido deixar de fumar. Respondi-lhe que sim e puxei um cigarro para lhe
fazer companhia. Falámos um pouco e tudo fez mais sentido ainda. Tudo faz
sentido. E nunca conheci ninguém que me fizesse acreditar nisso. Nunca conheci
ninguém como ela. Alguém que fizesse tanto sentido e ao mesmo tempo me fizesse
duvidar de tudo. Ninguém que com aquele ar de menina conseguisse causar tanto
sofrimento porque a sua beleza era tão tóxica, tão embriagante. E isso só me
fazia querê-la ainda mais. Tinha a imaginado como uma luz no meio de todo este
escuro e, naquele momento, percebi que não o era. Percebi que ela estava tão
perdida como todos os outros. Como todos nós.
E percebi que os seus olhos, que
outrora achei doces fontes de vida, se entristeciam quando ninguém estava a
olhar. Percebi todos os erros que os seus lábios tinham para contar e o quanto
eu os queria saber de cor. Mas nunca percebi que a rapariga de olhos meigos
pudesse ser uma tempestade, tão triste quanto o pôr-de-sol. Lembro-me de pensar
que aquela mulher era uma ilusão, que não podia ser real. Mas quem me dera ser
sempre tão docemente iludido como ela fez comigo.
Quis pedir-lhe para que falasse
comigo, para que me contasse a amargura que lhe enche as feições. Mas não se
pode obrigar uma pessoa a falar, pois não? Não se pode simplesmente agarrar-lhe
nos ombros e sacudi-la até que nos confesse tudo. Gostava de com um olhar
apenas saber o que lhe ia na mente naquele dia, o que a atormentava e porque
faz o que faz e o que não faz. Gostava que falasse comigo, que confiasse em mim
e que, aqui, visse um porto seguro para desabafar. Só quis que falasse comigo e
me tirasse as dúvidas que hoje me impedem de dormir.
Ela despediu-se com um sorriso
melancólico e eu deixei-me ficar a vê-la afastar-se naquele pôr-do-sol. Hoje,
essa imagem é menos nítida a cada dia que passa. A sua voz menos percetível. Os
seus olhos menos profundos. A cada dia que passa a sua memória vai-se esvaindo
de mim. Já quase não me lembro do seu cheiro ou de como enrolaria a língua ao
dizer certa palavra.
Reparo que, ainda, não sei o que
ela pensa do mundo e de Deus, não sei a sua opinião em política ou literatura,
não sei que música a refugia ou o seu livro preferido. Não sei o que gosta de
fazer quando não consegue dormir ou que sabor de gelado costuma pedir. Não
conheço os seus traumas ou melhores memórias nem as suas manias ou obsessões
mas gostava de as aprender. Quero conhecê-la mas não sei se me deixa. Quero
acompanhá-la mas não sei se o quer que eu o faça. Não sei sequer se pensa em
mim Mas, a cada dia que passa, essa imagem vai-se esbatendo. Vivo com a sua
memória, já sem contornos.
É incrivelmente estranho o quanto
o simples cheiro do tabaco entranhado nas roupas me dá uma sensação de
segurança, uma nostalgia de vidas perdidas e sonhos não concretizados. Talvez
porque me faz pensar nela. Acho que sim. O cheiro do tabaco e Shakespeare serão
sempre os meus preferidos.
Carolina C.